12.10.2006

Era Uma Vez Uma Careta

Era uma vez uma careta. Uma careta de mau humor que comprou uma barraca e foi acampar porque havia lido em uma revista semanal que é preciso combater o stress com um pouco de contato com a natureza.

A compra da barraca ocorreu sem maiores incidentes, ainda que a careta não tenha conseguido se conectar com o vendedor, aquela coisa coração a coração. Na verdade, é possível que aquela venda, mesmo tendo gerado uma boa comissão, tenha estragado o dia do vendedor por causa do mau humor da careta.

Torcemos, então, para que ele chegue em casa e não desconte em ninguém.

***

Na estrada, a careta pensou muito na vida, frisando ainda mais os lábios, que se cruzavam um sobre o outro, em um ângulo oposto ao caos das sobrancelhas, formando uma bizarra escultura, ainda mais se levarmos em consideração as maçãs da face desconjuntadas e oprimidas. Não era algo bonito de se ver, mas ao menos era algo iluminado pelo pôr-do-sol da autoestrada e refrescado pela brisa do fim de tarde que já trazia um gosto almiscarado de verão.

Nem a careta e nem eu sabemos o que é almiscarado, mas o gosto estava lá.

***

Acampar era coisa nova na vida da careta e ela não teve que se esforçar para refletir seu estado de espírito enquanto combatia com sofreguidão o processo de montar a barraca. Após tudo arranjado, a careta sentou sob as estrelas e assistiu TV no celular. Estava passando a primeira parte de 2001 – Uma Odisséia no Espaço e havia muitos macacos presentes.


***

A noite não era mais quieta no mato, apenas que os ruídos tinham uma outra qualidade. Grilos, corujas, as folhas ao vento, cobras, aranhas, pirarucus, piaçavas e pirlimpinpins conversavam sem dar trégua à careta. Ainda assim, ela dormiu e sonhou com comerciais de celular.

Após anos de comerciais de celular na TV, um dia veremos TV no celular.


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Sonhou que batia com o dedinho do pé na quina de uma mesa. Sonhou que era maio. Sonhou que o vendedor de barracas brigava com a mulher. Acordou mal no meio da noite.

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Pela manhã, a careta levantou e resolveu organizar a barraca como se fosse um bairro de Tokyo, daqueles arrumadinhos. Jogou fora tudo que não queria mais e sobraram apenas suas roupas mais básicas, uma camiseta Hering, um tênis de futebol de salão e uma calça jeans Wrangler. Vestiu como quem se cobre de mantos sagrados e caminhou dois quilômetros até o mar.

***

Apesar da proximidade com o verão, estava frio. A careta cerimonialmente abriu mão da camiseta, do tênis e da calça e entrou no oceano Atlântico. Seus músculos se contraíram com a baixa temperatura e ela sentiu o sal dissolvendo sua personalidade.

***

Se experimentado diretamente, o sal provoca caretas. Mas dissolvido em grandes quantidades de água, tem a propriedade de absorver as vibrações ruins e tirar grandes pesos das costas. A careta pensou nos navegadores do passado e imaginou se sua proximidade com o mar evitava o stress nas travessias épicas de um continente a outro.

Enquanto lembrava de Pedro Álvares Cabral, os traços da careta foram amolecendo. Primeiro as sobrancelhas se alinharam, depois os frisos da testa sumiram, as bochechas relaxaram pela primeira vez na vida, os lábios se despediram e os olhos ganharam um brilho nunca dantes visto.

***

Sobrancelhas, testa, bochechas, olhos e lábios começaram a se afastar, boiando para longe uns dos outros e se concretizou ali um dos grandes medos da careta. Longe da cidade, deixando para trás uma barraca montada e seu set de roupas básicas, ela deixou de existir. Na vaga criada por sua inexistência, houve por um instante a experiência do espaço aberto e livre, o último resquício da sua vida como careta. Então, no imediato instante seguinte, até mesmo essa experiência se dissolveu e ficou apenas o suísh suísh das ondas lambendo a areia, tentando alcançar as roupas da careta por pura diversão, a mais pura e limpa diversão.

Diálogos

"Me gusta hacer chistes en español."
"Pero no hablas español."
"Ai, caramba!"
"Cabron..."


***


“Bah, tô morto de fome.”
“Não, morto tu não ta senão tu nem conseguia falar comigo. Tu ta bem vivo aí.”
“É só jeito de dizer...”
“Não é jeito de dizer, é uma metáfora: uma figura de estilo que compara dois elementos através do seu significado imagístico...”

As aventuras do Homem Literal...


***


“Romão!”
“Alberto!”
“Há quanto tempo!”
“Pois é! O que você anda fazendo?”
“Correria, correria, voltei ontem das Filipinas onde ajudei o Steve Jobs a encontrar uma boa ilha pra comprar, mas tive que interromper a viagem no meio pra resolver uns problemas da minha mina de diamantes em Botsuana, que eu ganhei numa corrida de lanchas em Mônaco quando conheci uma das minhas duas namoradas francesas – não as belgas, que só dão trabalho e que eu só quero encontrar de novo quando fizermos a primeira viagem com lésbicas ao redor da Terra.”
“Sério?”
“Não, não, brincadeira... tou tocando a imobiliária do meu pai...”


***


“Boa tarde, eu gostaria de falar com o Sr. John You Tube.”
“É ele falando.”
“Sr. You Tube, o Sr é o dono do You Tube?”
“Eu mesmo, pode falar.”
“É que tem um arquivo meu que não ta aparecendo.”
“Olha, a senhora tem que trazer aqui pra eu ver...”
“Ai, moço... mas eu preciso mostrar o vídeo pras minhas amigas hoje...”
“Olha, hoje não dá, eu to cheio de serviço, talvez pra segunda...”
“Segunda? Ai, não tem como ser antes? Tem o chá de fraldas da Manoela aqui e a gente ia colocar um vídeo com toda a história dela com o Haroldo e a idéia do nome do bebê...”
“Como é seu nome?”
“Marta...”
“Olha, Dona Marta, eu tenho um monte de vídeos com problemas aqui... mas se a senhora vier aqui eu dou uma olhada rapidinho... se for algo simples eu faço o upload na hora... não prometo, mas dou uma olhada...”
“Ai, que bom... onde fica?”
“Nos Estados Unidos.”
“Como chega aí?”
“A senhora vem por dentro ou pela rodovia?”
“Por dentro, eu estou longe do centro.”
“Bom, então a senhora pega a Gusmão Péres, entra na rótula à esquerda e vai embora. Quando chegar no shopping de fábricas, entra na segunda sinaleira e segue toda a vida. Passa pelo Chile, vem pela América Central, cruza o México e logo logo a senhora vai ver uma fronteira que nem na novela das oito, lembra?
“Sei.”
“Então a senhora fala pro moço do guichê que vai falar com o dono do You Tube, explica a situação, que tem o vídeo, o chá de fraldas, eles me conhecem e deixam passar. Depois da fronteira é só parar qualquer um na rua e perguntar pra alguém sobre o You Tube que todo mundo conhece, a senhora chega aqui fácil.”
“Ta bom, muito obrigado viu?”
“Não tem de quê, até mais ver.”
“Deus te abençoe.”


***


"Luke, eu sou seu pai."
"Como assim, Leia?"

A Gota Laranja

A casa era toda branca. Quando eu digo toda, quero dizer toda. Como em 2001 - o filme. Móveis, paredes, aberturas, dobradiças, torneiras, chuveiro, rodapés, talheres, pregos nas paredes, tudo que não era considerado artigo pessoal era branco. Não gelo, branco branco mesmo.

Um dia, uma enorme gota laranja do tamanho de um Fuca veio flutuando rua abaixo e, fazendo uma suave curva, entrou no jardim do número 63. O jardim era verde. A casa era branca. Toda branca.

Como não havia ninguém em casa, não houve a necessidade de bater. De qualquer forma, a gota tinha a chave (com um pouco de dinheiro se consegue tudo hoje em dia) e não fez cerimônia. Entrou pela porta da frente com naturalidade e começou a examinar os cômodos procurando a melhor maneira de se espalhar.

A primeira idéia é sempre a mais entusiasmada e que parece causar impacto: o lavabo. Compacto e logo na entrada, ele seria inteiramente coberto de laranja pela enorme gota com facilidade, seria um espetáculo. O problema é que pouca gente dá atenção ao lavabo, é um cômodo menor, até mesmo as toalhas e os sabonetes vem em tamanho reduzido no lavabo.

Desistindo do lavabo, a gota laranja do tamanho de um Fuca seguiu pelo curto corredor (obviamente uma escolha rapidamente descartada, não vamos nem entrar em detalhes) e chegou à opção mais clássica entre as gotas: a sala. Por sua importância social entre as famílias que moram nas casas onde tudo é branco, a sala se destacava na atenção da gota com a vibração de um alvo saboroso. A sala exigia maior experiência, era uma operação complexa: se dividida informalmente entre sala de jantar e de estar (onde frequentemente "estar" significava simplesemente “ser”) e oferecia, além do espaço em si e dos móveis, uma boa quantidade de pequenos objetos de decoração e apetrechos randômicos que teriam de ser escolhidos a dedo se seriam alaranjados pela gota ou se seriam salvos. Qual a melhor composição? Espalhar-se toda por um canto ou estourar bem no meio cobrindo pequenos focos por toda a extensão do ambiente? Escolhas, escolhas...

Da sala era possível enxergar a cozinha e a área de serviço. Geralmente dois locais bastante visados pelas gotas, neste caso não houve atração mútua. Nem o conjunto cozinha-área brilhou à gota e nem a gota pareceu ameaçadora às duas peças inteiramente alvas. A cozinha trazia alguns empecilhos extras: como os talheres e a louça eram considerados de uso coletivo, também teriam de ser coloridos em alguma porcentagem e fazer isso com as portas dos armários fechadas era um trabalho até poético, mas também extenuante e de pouca ressonância real. Isso era reservado às gotas mais excêntricas, o que não era o caso desta.

A gota laranja subiu do tamanho de um Fuca subiu a escada branca ignorando a mesma como uma possibilidade, o que gerou ciumeira. Atravessou o corredor e foi à suíte: criados-mudos brancos, guarda-roupa branco, espelho branco, abajures brancos, penteadeira branca, sistema de som branco, laptop branco, roupas brancas, banheiro inteiramente branco (com banheira de hidro branca) e cama com dossel brancos.

Dignidade, enfim.

Sim, ainda havia dois quartos a serem explorados, mas esta gota é experiente o suficiente para reconhecer o local de sua morte quando interage com ele. Como os outros aposentos iriam competir com dossel e hidro?

Essa, aliás, era sua derradeira decisão: dossel ou hidro?

Escolheu o dossel pela dramaticidade, pela dificuldade maior de limpeza e pela estética: uma boa parte da tinta iria formar lindos desenhos no tecido translúcido que pendia inocente. E então flutuou até o centro da cama.

Ali, suspirou algumas vezes, fazendo com que sua circunferência se expandisse e contraísse sutilmente. Percebeu o ambiente ao redor e escolheu o momento de estourar.

A gota laranja estourou exatamente às 00h28min do dia 15 de outubro de 2002. Ela deixou seis filhos e a certeza de que a vida de uma gota não tem sentido sem invadir uma casa pintada toda de branco e fazer aquela sujeirada toda. É uma tradição que mantém viva a comunidade das gotas, seu bom humor e sua vontade de levar a espécie adiante. É difícil de entender. E, embora os habitantes das casas brancas discordem, é muito engraçado.